Antes dos molhes, entrada da barra era apontada como a responsável pelos acidentes
A ligação dos itajaienses com o rio e o mar é ainda mais estreita quando é pelas águas que se ganha o sustento. E a atividade pesqueira tem perrengues que só conhece quem vivenciou o desespero de estar numa embarcação avariada em meio a uma tempestade ou que colidiu em encostas rochosas na chegada ao porto. Nos canais oficiais há registro de vários acidentes, os mais antigos na entrada da barra, antes da construção dos molhes. E fora da costa itajaiense, tripulações locais também sofreram revezes, deixando as famílias com o coração na mão.
No livro “Braços negros na foz do Itajaí: ensaios históricos 1871-1905”, no qual o historiador José Bento Rosa da Silva resgata as histórias de trabalhadores ex-escravizados, ele conta a trajetória de José Francisco de Paula - encontrado andando a esmo por Itajaí em 1871, logo após o fim da Guerra do Paraguai.
Inicialmente, a polícia acreditava que se tratava de um desertor, mas, após interrogatório, ficou comprovado que se tratava de um náufrago de uma galera (tipo de embarcação) americana que naufragou nas imediações de Penha, sendo ele um dos sobreviventes dos sete tripulantes a bordo. No jornal “A Província” nº 69, há o registro do naufrágio em nota ao cônsul americano, em que se menciona o ocorrido com a galera Arcadia.
No cadastro dos naufrágios do estado de Santa Catarina tem outras pistas sobre tragédias ocorridas em embarcações nas imediações de nossa costa. Em 1873, tanto o veleiro Fidelidade quanto o navio Vieira colidiram na barra do Itajaí. Em 1914, foi a vez do vapor Pinto colidir na barra, e em 1925, o iate Luzitano.
O relatório do vice-presidente da província de Santa Catarina, em 1872, faz menção a outros dois naufrágios. O primeiro foi do brigue nacional Argonauta, em abril de 1871, e o segundo, no mesmo mês, foi o patacho Despique do Sul, em Cabeçudas, em que todos da tripulação se salvaram. Brigue e patacho são tipos diferentes de veleiros.
Destroços do Pallas continuam no fundo do rio Itajaí-açu
O historiador Edison D’Ávila, autor do livro “A Revolução Federalista de 1893 em Itajaí” (1993), resgata a história do naufrágio do navio frigorífico Pallas, em 1893, durante a Revolução Armada. Segundo ele, o navio foi tomado pelos federalistas e usado para carregar carvão. “Naquele tempo, os navios eram movidos a vapor, caldeira, e ele foi atracar aqui numa noite, quando não havia os molhes. Ao entrar na barra de Itajaí sem o prático, o comandante, talvez apressado, bateu numa pedra mais para o lado de Navegantes”, relata.
A história ainda rende, pois a carcaça do Pallas, que partiu-se em dois, ainda se encontra no fundo do rio. A descoberta foi feita em agosto de 2017, quando uma embarcação que fazia a dragagem do Itajaí-açu colidiu com os destroços. A dragagem é feita para aumentar o calado do rio e permitir a entrada de navios de até 400m.
O naufrágio que causou muito bafafá na cidade foi o do navio inglês Revesbydyke, que transportava madeira e chegou ao porto de Itajaí em setembro de 1965. Edison D’Ávila conta que, quando o navio estava saindo carregado em direção à Inglaterra, antes de atravessar a barra, começou a adernar.
“Todo navio que tem carga de madeira no porão e no convés precisa da supervisão do comandante e do piloto, que conhecem os pontos de equilíbrio da embarcação. Mas esse carregamento não foi feito da maneira correta e quando começaram a vir as grandes ondas, a carga se movimentou para um lado”, presume. Ele conta ainda que a carga de madeira apareceu em todo canto: nas praias de Navegantes, Cabeçudas, Atalaia, até na praia Brava.
“Aquilo chamou muito a atenção, porque o processo do naufrágio não aconteceu de forma imediata. O navio foi submergindo, submergindo, demorou tempo até aparecer só a pontinha do mastro e ficou todo mundo nas praias observando aquele navio afundar”, recorda.
No canal do youtuber Leandro LS, sobre atividades náuticas, ele conta que o Revesbydyke tinha como comandante Edgard Stanley Collins e o motivo apontado pelas investigações foi a sobrecarga do navio que levava 3,2 mil m³ de pinus. O navio chegou a ser rebocado pela embarcação Tridente, da Marinha do Brasil, até Cabeçudas, para desobstruir a entrada da barra. Para endireitar o navio, a tripulação cortou os cabos de aço para jogar a madeira ao mar. Mesmo assim, depois de poucos dias, ele naufragou. O caso está registrado no jornal A Nação.
O historiador Edison D’Ávila recorda ainda de um caso em 1960, de um navio chamado Laguna. A embarcação trazia sal de Mossoró (RN) para o sul, que era estocado nos depósitos de Itajaí, e levava farinha para o norte do Brasil. “O armador a, Antônio Ramos, mandou o navio buscar farinha em Laguna e no meio do caminho, entre Laguna e Itajaí, desapareceu misteriosamente. Eram uns 15 tripulantes, o comandante era da família Gonçalves Viana”, lembra. O historiador conta que várias hipóteses foram levantadas sobre o motivo do naufrágio. A mais aceita é que havia alguma abertura no casco e como a farinha absorve muita água, seu peso puxou o navio para baixo. “E as famílias passaram por grandes dificuldades, porque não podiam comprovar a morte dos familiares para que as viúvas recebessem pensão. Só através de processo judicial puderam emitir as certidões de óbito”.
Descaso com alertas de ciclones
Em junho do ano passado, o barco Safadi Seif virou de cabeça para baixo na costa de Garopaba, com oito tripulantes da região de Itajaí. Dois dias depois, cinco pescadores foram resgatados. O sexto sobrevivente foi encontrado numa boia pelo helicóptero Arcanjo do Corpo de Bombeiros, a 200km da costa, e encaminhado ao hospital Celso Ramos, em Florianópolis. Havia alerta de possibilidade de ciclone no dia em que a embarcação saiu para a pesca.
Em março de 2020, o atuneiro Tucano naufragou na costa de Paranaguá (PR) e todos os 23 tripulantes foram resgatados. Eles avisaram à Rádio Costeira de Itajaí e aguardaram o resgate num bote por 12h. As embarcações Irmãos Santos e Viviane F ajudaram no socorro. Em novembro de 2017, o atuneiro Nossa Senhora do Carmo naufragou na costa de Angra dos Reis (RJ) devido a problemas no piloto automático. Dos 23 tripulantes, 18 se salvaram.
Maresia fez mais de 230 resgates em alto-mar
Desde os 19 anos que Osmar Tibúrcio da Silva, não por acaso conhecido como Maresia, des-brava o fundo do oceano e rios para resgatar embarcações naufragadas e tripulantes em apu-ros. Depois de receber treinamento nos anos 1970, na BH Engenharia, responsável pela manu-tenção da ponte Rio-Niterói, ele abriu sua própria empresa. E, 20 anos depois, reuniu a prole para montar a Sulmar SC, atuante em 3,6 mil quilômetros da costa brasileira.
Tudo começou quando ainda era adolescente e começou a trabalhar como pescador embarca-do, assim como o pai, Tibúrcio. Só que havia uma crescente demanda para resolver perrengues subaquáticos, como quando a rede enrolava no cabo da hélice. Graças ao fôlego que lhe per-mitia ficar um minuto e 40 segundos debaixo d’água, Maresia começou a ser requisitado e viu ali a oportunidade de se especializar na função de mergulhador. Primeiro na pesca submarina e, depois, no resgate de embarcações e obras portuárias subaquáticas.
Ele abriu a primeira empresa como autônomo em 1977, dois anos antes da criação da Norman - que regulamenta o trabalho desses profissionais -, a fim de garantir a segurança da equipe. Antes era permitida uma equipe de três mergulhadores, agora são cinco. A profundidade em que podem atuar é de até 30 metros.
Em 1996, Maresia abriu outra empresa, desta vez com os filhos, que também se especializa-ram nos resgates. Alessandri e Luciana são mergulhadores e Daniela atua na parte administra-tiva. Entre os clientes estão desde o dono de um pequeno barco até empreiteiras do porte da Andrade Gutierrez. E eles trabalham do Rio Grande do Sul até o Espírito Santo.
Dos casos em que atuou, Maresia conta que o mais difícil foi no Rio de Janeiro. O barco Costa Azul estava trabalhando no emissário submarino quando um navio bateu nele, em frente à Capitania dos Portos. Dos oito mergulhadores, apenas três se salvaram. “Era mergulhador res-gatando mergulhador, nunca vou me esquecer deste episódio trágico e do velório que fizemos na praia em que jogávamos futebol nas horas de folga”, se emociona.
Outros casos fatais foram o barco Vô João G, que naufragou na costa de Barra Velha em 2013, vitimando cinco tripulantes, e o barco Ana Carolina, que pifou durante um ciclone em alto-mar, perto de Porto Belo, e matou seis tripulantes. Já no acidente com o barco Del Pesca XIV, que bateu numa laje de pedra na barra de São Francisco, dois dos seis tripulantes conseguiram se salvar.
Maresia garante que, na grande maioria dos casos, os náufragos são resgatados com vida. Ele recorda de um atuneiro chamado Ferreira, da empresa Femepe, que virou em Itapema e os seis tripulantes ficaram em cima da quilha esperando o salvamento. O único barco que não conseguiu resgatar do fundo do mar foi o Calquemar, que naufragou no Rio Grande do Sul. “Os balões rebentavam e o barco não conseguia ser içado”. Segundo o mergulhador, é a costa mais suscetível a naufrágios por causa das condições climáticas.
Fotos: Paulo Giovany, Tine & Wear Archives, Divulgação internet, acervo pessoal e Renata Rosa