Mais de um mês após a tragédia, desafio agora é encontrar casa para milhares de animais
O veterinário Marco Antonio Marques, 53 anos, já saiu de Itajaí alguma vezes para viajar até Canoas/RS e tratar dos animais resgatados em abrigos da cidade, uma das mais atingidas pela enchente. Ele e veterinários de todo o país estão se revezando para dar conta da missão que não é nada fácil. Além da lotação dos abrigos, quando as águas baixam surgem as doenças e o número de voluntários locais diminui porque também precisam reconstruir suas vidas.
“Eu sou de Santa Maria e felizmente minha família não foi atingida, até porque muitos já estão morando em Santa Catarina, mas não consegui ficar tranquilo até ir lá ajudar a cuidar dos animais que sofrem com a falta dos tutores, com as doenças e o tédio”, explica Marco que vive em Itajaí há 29 anos.
A enfermidade mais grave neste cenário é a leptospirose provocada pela urina do rato, que ataca os rins e o fígado. Mas, pelo fato de os animais estarem confinados, outro problema são as doenças infecciosas como a cinomose e a parvovirose, por isso há uma triagem entre os animais doentes que precisam ficar isolados, os saudáveis e as cadelas prenhas e com filhotes.
Ele conta que muitos tutores também foram atingidos pela enchente e ainda estão morando nos abrigos, já que suas casas estão destruídas ou condenadas. Quem está voltando pra casa tenta achar sua mascote, mas em número menor diante da quantidade de animais abrigados.
“Quando fui lá pela primeira vez, cerca de 10 pessoas levavam suas mascotes pra casa por dia, mas cada um dos quatro abrigos tem 2500 cães, que além de cuidados médicos precisam de gente que os leve pra dar uma volta, senão ficam ainda mais agitados”, explica. No feriado do Corpus Christi, Marco conta que a situação sanitária melhorou um pouco, já que a chuva parou com a chegada do frio, mas a falta de braços ainda preocupa.
“Como era feriado, encontrei voluntários de Floripa que, assim como eu, tinham tempo livre para ajudar, mas durante a semana é pouca gente para cuidar de tantos animais, por isso existe uma campanha por lares temporários, em que o animal recebe um microchip e depois é colocado para adoção, com a ressalva de que o tutor sempre vai ter prioridade”, revela.
A workaholic Lais parou a vida para salvar e cuidar dos cães
Quem convidou Marco a participar da força-tarefa em prol dos animais foi a veterinária Lais Paganelli, 32 anos, moradora de Navegantes. Logo que a enchente no RS começou a se agravar, em 4 de maio, ela chamou o marido e foram de carro até o estado vizinho sem ter ideia de como chegariam. Ela foi para Canoas depois de saber que era a cidade que concentrava o maior número de abrigos de animais no estado. E o que encontrou foi desolador.
“Como chegamos num momento em que a chuva não dava trégua, a situação dos abrigos era devastadora. Na parte externa, onde os animais saudáveis ficavam em tendas, estava tudo alagado e senti um desespero muito grande, como se não tivesse governo, nem liderança, nada em que pudéssemos nos apoiar, foi aí que fiz o vídeo que viralizou”, conta. O vídeo convocando veterinários para ajudar nos abrigos atingiu 2,5 milhões de visualizações no Instagram, e o vídeo sobre adoções obteve 1,7 milhão de views.
Ela conta que os galpões foram doados pela Ulbra (Universidade Luterana do Brasil) em parceria com a prefeitura, e que neles ainda estavam os entulhos da última enchente que tiveram que ser realocados para adaptar as baias para os animais. O local abriga cerca de 10 mil cães. Os voluntários que vieram de fora foram alojados em salas de aula da Ulbra, mas Lais diz que é impossível custear o translado em meio a uma catástrofe dessa magnitude.
“As pessoas precisam entender que não há conforto no voluntariado. Eu recebi mais de duas mil mensagens de pessoas que pediam casa, comida e transporte para virem e não temos como garantir isso. Se está disposto a ajudar, encha o carro com amigos e venha”, desabafou.
O maior desafio agora, segundo Lais, é fazer uma grande campanha de adoção dos animais, e para isso seria importante sensibilizar o empresariado para trazer estes animais e promover feiras pelo Brasil. “Se algum dono de transportadora disponibilizar o veículo e combustível, eu me disponho a ir com 30, 40 animais e trazer para uma feira de adoção. Fazemos tudo o que podemos para tratar dos bichos e dar carinho, mas a situação ainda é insalubre e deve se prolongar por muito tempo”, acredita. Lais já trouxe sete animais para casa.
Ela também convocou o pai veterinário e a mãe para ajudar a limpar as baias, pois braços são o mais importante neste momento. “Se alguém me dissesse que eu ficaria quase um mês sem trabalhar eu não teria acreditado. Sempre fui muito focada no meu trabalho e até agora não consigo me adaptar à rotina, só penso neles. É como se tivesse virado uma chave em minha cabeça. Quando você vê o desastre pela tevê é uma coisa, mas ir lá, conhecer os rostos, sentir a umidade, o desalento e tentar diminuir este desconforto te muda pra sempre”.
Outra situação que Lais encontrou foi o oportunismo de algumas pessoas, que só chegaram lá depois que a situação se normalizou para tirar partido da tragédia. “Infelizmente é como diz o ditado, nos momentos mais difíceis que vemos o pior e o melhor das pessoas. Os bons sempre chegam primeiro. Mas, da mesma forma que tem os oportunistas, existem pessoas maravilhosas como o Guilherme, um pedreiro que construiu as baias dos galpões no braço durante a madrugada e dormia em cima de sacos de ração. Eu me emociono só de lembrar”.
Fotos: Arquivo pessoal